O
Zumbido Interior
Ken Page e Simon Peter Hemingway
Extraído de The Traveler and the end of Time (O Viajante e o Fim dos
Tempos)
(Texto
gentilmente cedido pela Revista AMALUZ - Brasil)
LAGO AZUL O som persistente das palavras "Lago Azul" entoadas repetidamente, um som que eu ouvira certa noite no meu quintal em Clear Lake (Lago Cristalino), continuou a ecoar em minha mente muito tempo depois. Alguns meses depois, em 1985, sentime compelido a escrever ao Pueblo Taos, pedindo permissão para levar meu cristal ao Lago Azul. Também senti-me compelido a mandar junto com a carta outro cristal de minha coleção, como um tipo de prenda e uma maneira de eles experimentarem minha vibração.
Aproximadamente seis semanas depois, recebi uma carta do Pueblo. O imponente cabeçalho dizia: "Conselho de Guerra. "O Conselho de Guerra, dizia a carta, se reunira para considerar meu pedido, mas por razões que eles estavam impossibilitados de contar, não podiam me dar autorização para ir ao Lago Azul naquele momento. O cristal que eu lhes enviara estaria à disposição em qualquer horário no escritório do Pueblo quando eu quisesse ir buscá-lo.
Fiquei desapontado. Parecia-me imensamente importante levar o cristal ao Lago
Azul; tinha certeza de que os anciãos sábios do Pueblo também
enxergariam a verdade deste fato. Eu estava cansado de tocar meus negócios
falidos e queria realizar algo que desse significado à minha vida novamente.
Quando busquei o lado bom da situação em que me encontrava, pensei
em meu Tio Donny.
Quando eu tinha quatro anos de idade, minha mãe voltou a morar com meus
avós em Oakland para se refazer depois de seu divórcio. Meu avô
era pai de Donny. Na ocasião Donny tinha nove anos e eu era uma praga
para ele, mas mesmo assim eu o seguia por toda parte como um cachorrinho. A
natureza essencial de nosso relacionamento permaneceu inalterada durante muitos
anos. Eu o seguia a todo lugar da mesma maneira obstinada sempre que nossas
famílias se reuniam nos vários feriados que tinham significado
para nós.
Finalmente, a guerra do Vietnã nos separou, como separou tantas outras
famílias nos anos sessenta. Donny foi logo convocado, em 1961, e fiquei
sem saber o que aconteceu a ele depois, a não ser que parou de ir para
Oakland no Natal. Nossas vidas tomaram caminhos diferentes daquele ponto em
diante. Ao contrário de Donny, que foi convocado, eu me alistei na Guarda
Nacional, e 18 meses depois estava galgando a hierarquia da General Cable, rumo
a me tornar milionário.
A vida inesperada de Donny depois da guerra foi a realização de
um padrão iniciado quando ele nasceu quase 17 anos depois de seu irmão
mais próximo. Nunca se sabe o que Donny vai fazer, era só o que
dizia meu avô. Donny lhes enviava cartões postais de lugares tais
como Afeganistão e Tibete, e apenas minha mãe, rosacruz a vida
toda, parecia fazer idéia do que ele estava aprontando. Quanto a mim,
quando pensava nele, lembravame de suas carruagens legendárias: o Chevy
1958 preto novo que meu avô lhe comprou quando ele tinha 16 anos e o MG
Midget que ele comprou no ano seguinte. Lavar o MG de Donny, quando eu tinha
13 anos, foi uma de minhas primeiras experiências religiosas.
Agora nossos caminhos estavam convergindo novamente. Eu tinha um novo trabalho
excitante dirigindo uma empresa de hologramas, e minha visão da criação
de um holograma de Jesus exigia que eu viajasse para Santa Fe para supervisionar
a criação da escultura detalhada em miniatura que eu planejava
fotografar com raios laser. Sabia que Don estava morando em Taos, Novo México,
e resolvi ir visitálo. Praticamente não sabia nada sobre cristais
e algo me dizia que Don era o homem com quem eu precisava falar.
Ao lado da casa de Don, desci de meu Lincoln alugado, elegantemente vestido
num dos muitos ternos escuros com colete que eu usava como uniforme naqueles
dias. Ele morava numa casinha de um quarto no final de uma comprida estrada
coberta de pedregulhos, próximo a um desbotado ônibus escolar adaptado
que ele usava para receber convidados e como escritório. Havia vários
pedaços de madeira empilhados sob os beirais, anunciando o inverno próximo.
A porta se abriu. Diante de mim estava um homem com cabelos na altura dos ombros
e barba de hippie. O ar morno que passava por ele cheirava a fumaça de
madeira e incenso. Aquele era meu tio? Estendi a mão. "Oi, Don,"
disse eu. "É Ken." Don
estudoume solenemente enquanto retribuía meu aperto de mão. "Eu
sabia que alguém da minha família estava vindo," ele respondeu,
"Só não sabia quem." Olhoume mais um pouco e então
eu o segui para dentro. "Preciso lhe contar uma história,"
ele disse. Senteime pronto para ouvir. Eu gostava de histórias.
Don me contou do ano em que passou vivendo da terra na Colúmbia Britânica
em 1971. A história terminou quando ele foi envenenado e morreu. Prendeume
em seu olhar fixo, esperando ter certeza de que o que me contara tinha se arraigado.
"Don está morto," explicou sério. "Sou Akbar agora."
Eu compreendi. Akbar era o ser que viera habitarlhe o corpo depois que Don
se foi. Era um tipo de sublocação. Eu sabia o que era uma sublocação.
Meu tio não tirava os olhos de mim.
"Akbar," disse eu tentativamente, experimetando a sensação
em minha língua. Sem problemas. No lugar de meu superbacana Tio Don,
eu tinha agora o sábio e misterioso Tio Akbar. Todo mundo deveria ter
essa sorte.
Tio Don foi Tio Akbar durante alguns anos apenas. Hoje ele é conhecido
em toda parte por Drunvalo Melchizedek. Antes de conhecer Drunvalo, eu pensava
que um entrante era alguém que aparecia para cortar os cabelos sem hora
marcada. Entrante, descobri, era o nome popularizado pela escritora Ruth Montgomery
para uma alma que entra num corpo adulto sem o inconveniente do processo de
nascimento. Em essência, somos todos entrantes; nosso universo é
bastante jovem e todos viemos para cá vindos de outro lugar. Desde então,
passei a acreditar que o entrante quase sempre é um aspecto superior
da alma original no nascimento, depois de eu mesmo passar pelo processo. As
pessoas, descobri, o tempo todo, mudam.
Quando superamos as formalidades, descobri que Drunvalo realmente tinha muito
a me dizer sobre cristais. A primeira coisa que me disse foi que eles não
eram apenas pedras, e sim seres vivos, crescendo e se modificando todo o tempo.
Mostroume como respirar informações de um cristal segurandoo de
encontro à testa, fazendo mentalmente, ao mesmo tempo, uma pergunta.
Também explicou como os cristais podem conter imensas quantidades de
energia, quer positivas, quer negativas, podendo, dessa forma, ser usados seja
para machucar, seja para curar gente. Chegaram mesmo a descobrir, disse ele,
como captar toda a energia de uma explosão nuclear num cristal minúsculo
que se poderia segurar na mão. Agora, como na antigüidade, os cristais
ainda são a arma suprema.
No dia seguinte, ele me apresentou a Katrina Raphaell, que escreveu o livro
Crystal Enlightenment (Iluminação pelos Cristais) e dois volumes
relacionados ao assunto. Passamos o dia caminhando, e ela me contou ainda mais
sobre cristais. No final do passeio eu não podia imaginar mais nada para
perguntar sobre eles. Na noite anterior à minha partida, Drunvalo deume
de presente um cristal que ele tinha há um ano e meio e um livro, Joys
Way (Caminho da Alegria ou À Maneira de Joy) de Brugh Joy. Ele tocou
o cristal. "Eu não sabia para onde ele deveria ir," disse,
"mas agora vejo que pertence a você Ken."
Algumas semanas depois, tive de voltar para o norte do Novo México, e
desta vez Drunvalo foi comigo quando fui ao escritório do Pueblo Taos
reaver o cristal que enviara com minha carta. Um homem grande de peito enorme
com sorridentes olhos escuros nos chamou quando saíamos do edifício.
Drunvalo me apresentou a Jimmy, um velho amigo seu que morava no Pueblo. Ele
e Drunvalo se conheciam muito bem, embora houvesse longos intervalos em sua
amizade ocasionados pelos períodos de bebedeira de Jimmy. No momento
Jimmy estava a seco. Ele acenou sério a cabeça quando lhe contei
minha tentativa fracassada de obter permissão do Pueblo ir ao Lago Azul.
"Eu estava lá, cara," disse ele. "Disseram não
porque estão preocupados com feitiçaria que estão fazendo
lá em cima. Aquele lugar é poderoso demais. É bom não
arriscar."
De fato, como descobri depois, eram cuidadosos a ponto de postar guardas armados
na trilha na maior parte do ano. Quando descobri mais sobre o Lago Azul, fiquei
satisfeito por agirem daquela maneira. Além de ser um lugar muito poderoso,
estava também energeticamente ligado a outros locais sagrados no mundo
todo. A tribo de Taos estava certa em protegêlo.
Tirei o cristal que o conselho de guerra me devolvera sem abrir e o dei a Jimmy.
Era lindo, claro e com acabamento duplo. Eu soube imediatamente que devia dálo
a ele, e foi o que fiz. Jimmy o segurou contra a luz, admirandoo. Um sorriso
perpassou suas feições alcantiladas como o Sol surgindo por cima
de uma montanha. "Vou levar você lá," anunciou de repente.
Meu coração saltou como um peixe atrás de uma mosca.
Drunvalo me bateu nas costas e deu um grito. Afinal íamos ao Lago Azul.
Algumas semanas depois, Jimmy me telefonou na Califórnia. Aluguei novamente
um carro em Albuquerque e fui até Taos. Jimmy morava num velho trailer
duplo que o vento rasgara como tecido de algodão. Sentamos e falamos
enquanto o vento assobiava à nossa volta e o forno a propano rugia em
vão para o vento como um velho brigão. Jimmy me falou de Mario,
um velho de 75 anos, o índio kiva encarregado da educação
espiritual das crianças do pueblo. Mario era tão instruído
que podia passar um mês inteiro apenas ensinando as crianças sobre
o sol e a lua. Embora Mario fosse tio de Jimmy, eles eram chegados como pai
e filho, assim era natural que Jimmy contasse ao homem mais velho sobre nossa
planejada viagem ao Lago Azul.
Mario ficou imediatamente preocupadíssimo com o que estávamos
fazendo. Na noite seguinte à que ele falou com Jimmy, colocou duas penas
de águia cruzadas em seu peito e pediu a um sonho induzido por drogas
para lhe mostrar a verdade do que estávamos tentando. O sonho trouxe
boas notícias para todos nós. Mario disse a Jimmy que o que estávamos
fazendo mudaria o mundo, e teimou em ir junto. Àquela altura, estávamos
todos muito entusiasmados. Nenhum de nós pensou por um momento que a
viagem que estávamos tentando possivelmente seria perigosa. O único
sinal que tive de que alguma coisa estava errada era o tempo frio para aquela
época do ano e o fato de Jimmy me dizer que eles estavam tendo dificuldades
para pegar os cavalos.
Na manhã seguinte, fomos ao "rancho" de Jimmy em sua velha
caminhonete. O rancho consistia realmente apenas de um alpendre e de um curral
construídos na terra onde ele mantinha seus animais. Mario já
estava lá nos esperando com apenas dois cavalos selados. Estávamos
em três. Olhei alarmado para Jimmy. Ele encolheu os ombros. Era um famoso
encolher de ombros característico de muitas pessoas nativas. O encolher
de ombros continha toda a história de seu povo. Era um encolher de ombros
que reconhecia o roubo de tudo o que eles possuíam, o assassinato de
seus avós, a dor de ver o estupro diário da Terra praticado por
homens que não davam a mínima para ela. Era um encolher de ombros
que colocava um cavalo perdido em sua devida perspectiva.
Mario me saudou calorosamente e fez algumas piadas sobre o tempo. Pude dizer
imediatamente, só de olhar para ele, por que sabia tanto sobre o sol
e a lua: eles três obviamente tinham passado muito tempo juntos. Seus
cabelos grisalhos estavam amarrados para trás numa trança, e ele
mostrava profundas marcas de riso ao redor da boca, conseqüência
de toda uma vida a sorrir. Estava claro que perder um cavalo significava ainda
menos para ele do que para Jimmy; ambos eram tão duros quanto aço
temperado e caminhariam descalços se preciso. Os dois estavam vestindo
apenas calças jeans, botas de vaqueiro e jaquetas de lã xadrez
leves, embora estivesse chovendo.
Eu estava completamente encantado com a recusa deles de se irritar com a mais
adversa das circunstâncias. Era uma prova flagrante de sua fé no
Criador. O fato de estar encantado não me impediu de entregar os dois
ponchos para chuva que tinha colocado em minha mochila no último minuto.
A namorada de Jimmy levou embora a caminhonete numa nuvem de fumaça azul.
Observei a boléia aquecida e as luzes traseiras retrocedendo pela estrada
coberta de neve e fiquei pensando no que tinha me metido. Alguns minutos depois
partimos, comigo pendurado todo duro na sela na garupa de Mario, como um personagem
de faroeste que tivesse perdido o cavalo num jogo de pôquer.
As coisas até que não pareciam muito ruins no princípio.
A chuva deu lugar a enormes flocos de neve úmidos que caiam lentamente
como cinzas de uma grande fogueira a queimar em algum lugar além das
nuvens. A trilha, que conduzia a um local para piquenique às margens
de um rio, era larga e batida, e um pouco abaixo dela uma grande coruja coberta
de neve voou na nossa frente por cima do rio, as asas majestosas batendo com
lentidão hipnótica. Trocamos olhares de compreensão. Todos
sabíamos que as corujas eram poderosos animais medicinais.
O que eu não sabia era que os lakotas acreditam que a coruja, por eles
chamada Hinhan, representa morte, chamando o nome daqueles cuja vez de morrer
chegou. O espírito da coruja, Hinhan Nagi, guarda a estrada do espírito
que leva à Via Láctea. Os viajantes que não estavam prontos
para a viagem ela lançava de volta à Terra, onde eles se tornavam
fantasmas errantes. Antes do fim do dia, esta história adquiriria um
tipo de sinistra ressonância para mim.
Quando passamos o local de piquenique abandonado coberto de neve, a trilha sem
mais nem menos desapareceu. Olhava ora Jimmy, ora Mario, em busca de pistas,
mas eles continuaram a impassivelmente impelir os cavalos adiante. Estávamos
seguindo um rio até o Lago Azul em vez de tomar a trilha habitual por
causa do tempo. Sem dúvida, ninguém mais tomava a rota do rio
há muito tempo. A trilha estava bloqueada em vários pontos por
pinheiros caídos que obviamente estavam ali desde o inverno anterior.
Tivemos de cruzar e voltar a cruzar o rio vezes sem conta para nos desviar das
árvores, e a cada vez que o fazíamos ficava cada vez mais difícil
retomar a trilha na neve. Meu casaco de baixo estava se transformando numa cara
esponja de penas e as calças jeans de Mario estavam escuras até
os joelhos por causa da neve derretida. As escarpas do desfiladeiro no qual
nos encontrávamos erguiamse cinzentas e agourentas dos dois lados como
os muros de uma prisão, à medida que os cavalos pateavam de um
lado para o outro do rio raso.
Finalmente, a trilha pareceu desaparecer por completo e fizemos uma parada no
leito do rio para conferenciar como cães de caça contrariados.
A respiração dos cavalos produzia um vapor tênue. Pensei
na água que passava por suas patas e como era impelida para cima por
sua energia e como cairia novamente em forma de chuva, acabando por encontrar
seu caminho de volta à sua mãe, o mar. Meu devaneio terminou abruptamente
quando senti as pernas de trás do cavalo darem um grande pulo debaixo
de mim. Perscrutei acima. A trilha, pelo que parecia, subia direto até
o aterro. Não via Jimmy em lugar nenhum.
Fitei apreensivo por cima do poncho de Mario, minhas juntas brancas agarrando
a sela. Uma linha sinuosa de círculos cinzentos sobre a neve dava conta
do progresso de Jimmy, traçados mais longos mostravam onde o cavalo escorregara
na rocha molhada e lisa por baixo da neve. Ele já tinha chegado ao cume
do outro lado do rio e se perdera numa curva entre as árvores, mas nosso
cavalo estava empacando. O cavalo de Jimmy tinha escorregado, embora carregasse
uma carga equilibrada, com apenas metade de nosso peso.
Mario grunhiu, impelindo o cavalo para frente com as pernas. Ele tremia embaixo
de nós, retesando cada músculo, esticandoo como uma corda de arco
num esforço para fazer com que parássemos de escorregar para trás
à medida que seguíamos aos trancos e barrancos nosso caminho acima
na lateral do aterro. Olhei nervosamente lá trás a silhueta escura
do rio no ponto em que ele cortava a neve nove metros abaixo. Mario tranqüilizou
o cavalo, incentivandoo a seguir em frente outra vez. Então, foi o inferno.
O cavalo arremetia desesperadamente quando começou a escorregar para
trás. Mario gritou com ele. O cavalo deu um coice para trás e
então minha cabeça bateu nas costas de Mario enquanto os cascos
do cavalo se agitavam em desespero contra alguma besta invisível pairando
no ar diante de nós. Só sei que depois o chão era um borrão
branco se precipitando na minha direção, e então eu estava
descendo e rolando pela lateral do desfiladeiro. Agarrei com todas as forças
um toco. Ainda inteiro e anestesiado pela adrenalina, pulei depressa para ver
se Mario estava bem. Ele não estava.
Vi Mario a seis metros acima de mim, dobrado sobre o pescoço do cavalo
que tremia e se agitava embaixo dele. O declive abaixo deles era íngreme
e liso como um telhado de ardósia molhado. Mario se agarrava ao pescoço
do cavalo e sussurrava em seu ouvido enquanto o cavalo bufava e soltava vapor
pelas narinas. O animal se arremessava espasmodicamente para frente como se
estivesse sendo eletrocutado, e a seguir começava a escorregar para trás
sem parar, batendo impotente contra as rochas negras molhadas embaixo da neve,
até que escorregou para trás, batendo na carcaça de um
grande pinheiro caído que tínhamos cruzado no caminho para cima.
Ficaram lá por um momento o cavalo, o cavaleiro e a árvore
todos equilibrados como num improvável número de circo.
A árvore morta rangeu e se mexeu como um ser turbulento adormecido. O
cavalo entrou em pânico e empinou. Eu o vi balançar em suas grandes
e trêmulas pernas traseiras como um desses garanhões de filme,
então cavalo, cavaleiro e árvore todos se separaram. Mario voou
para trás pelo ar como se tivesse sido atirado de um canhão, pousando
com toda violência nas rochas, neve e pedregulhos três metros abaixo
de mim, e a dar cambalhotas, desapareceu da vista. O cavalo, retorcendose em
pleno ar como um golfinho a saltar, pousou de lado com um estrondo feio e rolou,
a debaterse impotente, aterro abaixo, indo terminar a se agitar e a relinchar
no rio. Ouvi um estrondo baixo e o som de madeira se lascando acima de mim,
então, volteime exatamente a tempo de ver uma mancha escura, gordurosa
e lisa na neve, como se ela tivesse acabado de ser arada, e senti o impacto
quando o pinheiro morto escorregou e bateu na parte de trás de minhas
pernas, lançandome para frente.
Vime estendendo as mãos bem a tempo de impedir que eu rachasse minha
cabeça na rocha cinzenta que se projetava cruelmente diante de mim como
a barbatana dorsal de um tubarão. Não senti nada. Eu deixara meu
corpo para assistir a coisa toda de um local seguro bem acima do riacho.
Soube imediatamente que eu já morrera aqui numa vida passada neste mesmo
lugar, naquela mesma rocha e que eu tinha escapado de meu corpo antes de ter
de revivêlo uma segunda vez. Eu me vi lutando. Meu pé estava preso
no toco, e eu estava dependurado, rosto para baixo, na lateral do desfiladeiro,
minha perna num ângulo impossível. Mario estava de joelhos no rio,
balançando a cabeça enquanto a água fluiu por seu corpo.
O cavalo acabara de se pôr em pé num esforço e cambaleava
por ali em choque como um potro que não consegue encontrar a mãe.
Ouvi Jimmy xingar baixinho, ele voltara para ver o que eram todos aqueles estrondos
e gritos. Então imediatamente voltei a meu corpo, dependurado indefeso
sobre aquela rocha assassina, tentando parar a dor de minha perna me segurando
em um ramo seco que havia sobre a minha cabeça. Jimmy foi correndo até
mim e tentou virar a árvore, mas em vão. Era comprida como um
poste de telefone e as raízes estavam esmagadas no leito do rio. Mario
estava de joelhos na água, segurando os quadris e fazendo caretas cada
vez que respirava. Jimmy foi escorregando até o rio para dar uma olhada
nele, e quando Mario mostroulhe algo com a cabeça, ele foi patinhando
na água em suas botas de vaqueiro até as raízes eriçadas
da árvore que me segurava. Ele a examinou por um momento e a seguir ajoelhouse
dentro da água gelada para colocar o ombro debaixo de um ramo. Agarrou
a árvore por debaixo da água e tentou com todas as suas forças
erguêla. Eu sentia a árvore se mexer, não muito, mas o bastante
para ir soltando meu pé de trás do toco. Desci devagar do tronco
no qual estava suspenso. Meu pé doía como o diabo, mas consegui
pôr meu peso nele. Acenei para Jimmy que já estava tirando Mario
do rio. Parecíamos sobreviventes de uma guerra, mas estávamos
vivos.
Nós nos recompomos do outro lado do rio. Mario se mexia devagar, segurando
o lado do corpo. O cavalo ainda estava tremendo. Sem caber em mim pelo que considerei
meu triunfo sobre a morte e entorpecido pela excitação, todo machucado,
ainda assim estava pronto para comandar a expedição ao Lago Azul.
Eu sentia a energia do cristal guardado em minha mochila a me incitar. Só
quando descobrimos que Mario quebrara várias costelas, percebi que fôramos
derrotados.
À medida que a adrenalina arrefecia, o frio se insinuava. Voltamos pelo
desfiladeiro, levando o que pareceram horas, até darmos com uma pequena
clareira onde poderíamos fazer uma fogueira. Mario pegou musgo de debaixo
das árvores enquanto Jimmy fazia o reconhecimento dos arredores, quebrando
madeira morta seca dos ramos mais baixos das árvores. Para minha surpresa,
logo dispúnhamos de uma fogueira crepitante e nos sentamos a seu redor
como se estivéssemos sendo cozidos em vapor, como batatas assadas, trocando
histórias e dividindo o pão francês e o queijo que eu trouxera
de São Francisco, o único alimento que tínhamos.
Eu estava preocupado, achando que nosso acidente fosse um tipo de presságio.
Jimmy e Mario balançaram as cabeças ao mesmo tempo. Eles viam
a resistência como um sinal positivo, como uma rachadura numa arvorezinha,
a mostrar que ela será grande. O que estávamos fazendo era muito
importante, eles garantiram. Caso contrário, por que o Criador teria
julgado conveniente testar nossa determinação daquela maneira?
Mario caminhou a maior parte dos 16 quilômetros até o rancho de
Jimmy, alegando que estava começando a sentirse mais firme. Quando lá
chegamos, às oito horas, estava chovendo e fazia muito frio. Não
havia sinal da namorada de Jimmy nem de sua caminhonete pickup. Desarreamos
os cavalos e nos dispomos a andar os 4,8 quilômetros de volta ao Pueblo.
A namorada de Jimmy apareceu derrapando numa nuvem de fumaça azul depois
de 1,5 quilômetro.
Fiz as malas rapidamente no trailer, com medo de ficar retido pela neve em Taos,
despedime, fechei a grande porta de meu Lincoln alugado e, então, instantaneamente,
estava de volta ao mundo que tinha deixado, um mundo que Jimmy e Mario nunca
tinham conhecido. Passei por Taos escutando música suave no rádio
enquanto o aquecedor estalava e zumbia e os limpadores perseguiram os imensos
flocos de neve de um lado a outro do párabrisa.
Eu não fazia idéia do que tinha dado errado em minha missão
ou por que tinha quase nos custado nossas vidas. Ainda não sei hoje.
Talvez o espírito da coruja, Hinhan Nagi, tenha nos achado incompetentes
e nos tenha lançado montanha abaixo por causa de nossa impetuosidade.
Os homens Sioux usavam tatuagens espirituais secretas nos pulsos que, segundo
se dizia, garantiam a bênção de Hinhan em sua jornada rumo
à Via Láctea. Tudo o que eu tinha era minha determinação.
Eu sabia que voltaria ao Lago Azul, esperando até ouvir aquela coruja
chamar meu nome, se fosse preciso, e estava levando comigo aquele cristal.
A BÊNÇÃO DA CORUJA
Alguns meses depois de minha primeira viagem ao Lago Azul, percebi que estava
tendo dificuldade para dormir. Eu começara a ouvir um tipo de zumbido
entre os ouvidos.Tentei ignorálo no princípio, pensando que poderia
ser algum sinal inicial de enfermidade mental o fracasso de meus negócios
estava me causando muita tensão na ocasião. Tentei tocar música
quando ia para a cama, uma solução da qual minha esposa não
gostou, e quando isso não funcionou, tentei desligar meu rádio
relógio.
Quando sugeri tentarmos desligar a chave geral de força da casa, minha
mulher me olhou como a dizer que sem dúvida eu estava à beira
da loucura. Talvez estivesse.
"Você tem razão," afirmei. "Vou só olhar
lá dentro mais uma vez." Ela olhou para cima. Eu já a brindara
com o espetáculo de rastejar de quatro de cueca pela casa, aplicando
o ouvido às paredes e à mobília como um cachorro inquieto.
Sentei-me na cama como vira gente da meditação transcendental
fazer e purifiquei minha cabeça de pensamentos estranhos. Instantaneamente
o zumbido ficou mais alto. Sem dúvida, se eu estava ouvindo o som, estava
também percebendoo em outros níveis. Quanto mais me concentrava
nele, mais alto ficava. Abri os olhos depois de alguns minutos e caminhei diretamente
à caixa de vidro que guardava o cristal pelo qual eu quase morrera. O
próprio cristal estava criando um tipo de zumbido baixo e pulsante. Estendi
a mão na direção dele, e então tirei a mão
em choque.
O cristal estava quente!
Senteime na cama para pensar nisto por um momento. Incapaz de chegar a conclusões
firmes, peguei um par de luvas e uma pá na garagem, cavei um buraco raso
debaixo de uma árvore no meu quintal, e enterrei o cristal, com a ponta
para baixo. Isso deu um jeito no zumbido infernal, mas o próprio cristal
permaneceu obstinadamente alojado em minha consciência. Eu pensava nele
freqüentemente e em horas inconvenientes, como uma antiga paixão
ou um amor proibido. Eu queria concluir minha missão para poder pensar
em outra coisa, mas ainda havia mais obstáculos a superar.
Em primeiro lugar, o Lago Azul ainda estava coberto de neve. A rota do rio estava
praticamente intransitável sob as melhores condições, e
a única alternativa era uma passagem de quatro quilômetros entre
duas montanhas. Não era possível chegar lá em cima com
um grupo de cães. Além disso, estava claro o fato de que o Conselho
de Guerra não queria que eu fosse para lá. Não era nada
pessoal. Não queriam que ninguém que não fosse membro da
tribo fosse lá. O Espírito do Norte cuidava do lago todo o inverno,
mas quando a neve derretia, assumiam os guardas armados. Montavam guarda todo
o verão, até a volta da neve os render, e atiravam nos intrusos
que lhes aparecessem pela frente. O lago era guardado também em outros
níveis.
Eu falara com Jimmy algumas vezes durante o inverno, e ele me assegurou que
estava mais a fim que nunca de me ajudar a levar o cristal para casa no Lago
Azul.Mario também estava, mas ainda estava se recuperando de sua experiência
de única bala humana de canhão de Taos. Nós dois acreditávamos
que o que estávamos fazendo seguia a ordem divina e o fluxo das coisas
e que um portal seria aberto dessa forma para nós, mas que o senso de
oportunidade poderia ser crucial.
No final do verão de 1987, Jimmy finalmente me chamou. Estava na hora.
Todo o Pueblo seguia para o Lago Azul uma vez todos os anos para realizar uma
de suas cerimônias mais importantes.Teríamos uma pequena oportunidade
logo depois que eles partissem. Jimmy tinha verificado e o caminho estava livre.
Nem se fosse de Concorde, o vôo para Albuquerque teria sido rápido
o bastante para mim. Eu queria ir a toda pressa para Taos também, mas
me lembrei da conversa ao pé da fogueira que tivera com Jimmy e Mario
sobre resistência e em vez disso escutei música alta. Logo a rodovia
elevouse do deserto como a coluna de um grande gato a se espreguiçar,
e eu conseguia sentir a mudança de vibração à medida
que me dirigia às montanhas. Santa Fe veio e se foi e então eu
estava em Taos.
Trinta minutos depois, eu via a casa móvel desbotada de Jimmy agigantandose
em meu párabrisa. Jimmy abriu com os ombros a porta torta de dentro,
como numa invasão policial ao contrário, e éramos novamente
dois velhos amigos, trocando histórias de guerra e nossos sonhos para
o futuro.
Jimmy me falou sobre um amigo seu, Fred Hopper, que por sua vez lhe contara
de três xamãs que tinham vindo desde o México. Os xamãs,
disse Jimmy, tinham construído uma roda medicinal na lateral de uma colina
que dava para o Pueblo. Fred estivera lá e dissera a Jimmy que era uma
bela cerimônia, que todos eles ouviram sons e viram luzes dançantes
em cima dos cristais que os xamãs tinham usado. O propósito da
roda medicinal, disseram os xamãs, era se preparar para a chegada de
um cristal. Jimmy abaixou ligeiramente a cabeça para me fixar com um
olhar significativo. Fiz que sim com a cabeça. Ele não contara
a ninguém o que estávamos fazendo, mas parecia que, de alguma
maneira, estes anciãos que mal falavam inglês sabiam.
Todos eles vieram reunirse ao redor do trailer naquela noite. Os xamãs
eram seres humanos encantadores, sem idade e no entanto muito velhos. Vestiam
trajes de camurça adornados com refinados enfeites de contas, sorriam
muitas vezes e escutavam com muito cuidado. Desembrulhei o cristal e o segurei
mostrandoo a eles. O pôrdosol a se derramar janelas adentro fazia parecer
que eu estava segurando uma chama entre as mãos. Os olhos dos velhos
xamãs eram grandes como pires. Este era o cristal, eles me explicaram
em mau inglês. Foi por esta razão que tinham viajado ao Pueblo.
Eu sentia o cristal palpitar enquanto o segurava. Ele nos reunira a todos. Todos
tínhamos viajado milhares de quilômetros pensando que estávamos
viajando sozinhos, mas estivéramos juntos o tempo todo.
Desanimei um pouco quando olhei meu relógio. Eu planejara ir a Taos naquela
noite para me abastecer para a viagem ao Lago Azul. Tinha ouvido falar de histórias
sobre Jimmy cozinhar e não queria me arriscar, mas quando todos os nossos
convidados se foram estava muito tarde. Jimmy empurrou a cadeira para atrás,
espreguiçandose. "Melhor dar uma olhada na bóia," disse
ele, sorrindo.
Fiz uma exibição de espreguiçadas e bocejos, e então
lentamente me pus a caminho da cozinha. Encontrei Jimmy fitando uma panela fumegante
que parecia conter água de pântano. Espetou um garfo grande na
água, e então tirou algo parecido uma enorme enguia cinza, em
busca de minha aprovação. Olhei a coisa, tentando não parecer
horrorizado. Jimmy a deixou cair de volta na panela, a água esguichou.
Balançou devagar a cabeça, cheirando audivelmente o vapor para
me mostrar como era bom. Ele só disse: "Língua de boi. Bom."
Meu estômago se enrolou todo como um porcoespinho. Pensei no pão
e queijo que planejara comprar em Taos, onde eu os colocaria na minha mochila
e como seria partir pão francês morno a quatro mil metros de altura.
Obviamente, racionalizei, a seriedade de minha missão exigia que eu jejuasse.
Levantamonos antes da aurora na manhã seguinte. Mario estaria conosco
somente em espírito este ano, assim como meu Tio Drunvalo. Desta vez,
começamos seguindo a rota do rio, e então saímos dela para
subir a uma passagem íngreme próximo do nível de quatro
mil metros. Embora fosse um lindo dia e a única neve que vimos estivesse
nos níveis mais altos, tentei ficar atento ao que me cercava o máximo
possível, no caso de encontrarmos mais alguma "resistência."
Logo os juníperos e os pinheiros deram lugar a álamos balouçantes,
que deram lugar a absolutamente nada à medida que subíamos acima
da linha das árvores e finalmente atingimos a selada entre montanhas
que se dividam de cima abaixo. Abaixo de nós estava o Lago Azul, tão
longe que não parecia maior que uma xícara de café, resplandecendo
um belo azul iridescente como se estivesse repleto de líquido turquesa.
O caminho abaixo era tão íngreme que tivemos de desmontar e conduzir
os cavalos. O lago lentamente aumentava à nossa frente, e com isto crescia
minha expectativa. Eu estava prestes a concluir algo pelo qual todos tínhamos
arriscado nossas vidas, e parecia que só um terremoto poderia nos deter
agora.
Quando chegamos ao lago, fiquei imediatamente impressionado por uma pedra chata
grande que se projetava do lago como uma pequena ilha. Era o lugar para realizarmos
uma cerimônia, e depois de guardarmos os cavalos, comecei imediatamente
a subir à sua ampla superfície. Primeiro peguei o próprio
cristal e cuidadosamente o desembrulhei. Mario tinha nos dado de presente penas
de todos os diversos tipos de pássaros, embrulhadas em cascas de milho,
e Jimmy tinha embrulhado o cristal com todas as penas e cascas de milho. Por
cima ele amarrara um pedaço de couro com fitas de couro. Coloquei o presente
ao lado da bolsa de camurça branca que minha boa amiga Mary Schlosser,
cujo Pueblo se chamava Flor do Berço, tinha me dado. A bolsa estava cheia
de fubá sagrado, sagrado porque foi moído por virgens. Fiz um
círculo com vários fetiches, as penas de Mario, outros cristais,
colocando o quartzo da Smoky Mountain de Clear Lake no centro. Então
salpiquei uma pitada do fubá em cada uma das quatro direções
como Mary tinha me ensinado. Depois que terminei minha cerimônia, Jimmy
cantou canções tradicionais de Pueblo e dançou. Em seguida
ficamos cerca de uma hora rezando. Depois da oração nos olhamos.
Estava na hora.
Jimmy ficou de pé no alto da pedra e eu fiquei de pé atrás
dele com a mão em seu ombro esquerdo. O lago, que estivera liso como
vidro quando começamos nossa cerimônia, estava ondulado agora.
As ondulações se abriam em largos círculos a partir de
um vórtice central. O zumbido que eu ouvira lá em meu quarto em
Clear Lake estava audível novamente agora e ficando sempre cada vez mais
alto. Jimmy levantou o braço e atirou o cristal. Ele formou um arco por
cima da água, captando o Sol para um instante passageiro antes de cair
diretamente no centro do vórtice.
Instantaneamente, Jimmy e eu fomos atingidos por uma explosão de energia
que parecia um vento com a força de um furacão. Ao mesmo tempo,
senti uma mudança de energia dentro de mim. Sentia como se estivesse
sendo afinado uma oitava acima, como um piano. Pude sentir a energia em meu
chakra do coração se deslocando a meu chakra da garganta. Ouvi
uma tosse atrás de mim e me voltei. Jimmy tinha caído ao chão
e estado rolando e segurando a garganta. Fiz menção de me aproximar,
mas, com um aceno, fez sinal para eu ficar longe. Fosse qual fosse a mudança
de energia que eu sentira, ela desencadeara sua asma. Volteime de novo para
o lago. As ondulações que víramos quando começamos
eram agora ondinhas; o zumbido que eu ouvira estava muito mais alto. Decidi,
tolamente, tentar elevar ainda mais a energia, ao nível do terceiro olho.
Ajoelheime e murmurei um tom de freqüência igual à que vinha
do lago. Então lentamente elevei a freqüência.
Só me lembro de estar estirado no chão próximo a Jimmy.
Assim que tentei elevar o diapasão do som, senti uma intensa dor repentina
em meu terceiro olho. Senti exatamente como se alguém tivesse me atirado
uma faca. Levantei a cabeça o suficiente para olhar Jimmy. Ele me olhou
com o canto do olho e sorriu, tentando tomar fôlego. Nós dois parecíamos
ter acabado de cair de um trem. Simplesmente fiquei lá escutando o lago
zumbindo, sentindo o Sol quente bom no rosto e escutando Jimmy tentando sorver
um pouco daquele ar rarefeito de montanha para recuperar a voz.
Finalmente, ambos nos recuperamos e conseguimos guardar tudo e voltar. Jimmy
disse algo sobre parar para comer, mas para ser sincero, eu meio que esperava
que ele se esquecesse eu poderia passar sem vêlo fatiar uma grande
língua de boi cinzenta fria. Quando voltamos à passagem, saímos
da trilha que tínhamos tomado na ida e seguimos um riacho raso até
uma clareira onde a gente do Pueblo acampava durante suas visitas ao Lago Azul.
Como um mágico, Jimmy gesticulou na direção de um grande
saco de lixo verde pendurado em cordas entre duas árvores. Era a despensa
na qual o povo nativo mantinha sua comida protegida dos animais. Jimmy desamarrou
a corda e abaixou o saco de lixo ao chão. De dentro, tirou um pacote
embrulhado em papel alumínio, que me deu. Dentro havia um pão
que a mãe dele assara na véspera e um pedaço de queijo
fresco. Fiquei extático. Era exatamente o que queria. Enquanto eu partia
o pão, soube que, apesar de todos os milhões que perdera, nunca
mais me faltaria nada. O pão e queijo, a 25 quilômetros de qualquer
lugar, era para mim prova absoluta de meus poderes de manifestação.
Jimmy e eu devoramos nosso almoço, rindo como duas crianças bêbadas
em meio a ruínas. Algo muito grande acabara de acontecer no Lago Azul.
Infelizmente, nenhum de nós fazia idéia do que era.
Seguimos o rio de volta ao rancho de Jimmy em vez da trilha íngreme da
ida. Se possível, o caminho parecia ainda mais coberto de vegetação
depois de uma estação de tempestades de inverno do que quando
tentamos seguilo no ano anterior. Fazia muito tempo que alguém estivera
ali com uma serra. Havia árvores caídas por toda parte, obrigando
a desvios constantes. Depois de aproximadamente três horas abrindo nosso
caminho pela vegetação montanha abaixo, chegamos ao local onde
ocorrera o acidente no ano anterior. Ali, quase exatamente sobre a pedra onde
eu quase morrera, vi um grande crânio de vaca no ramo de uma árvore.
Não soube dizer se estava lá em nossa viagem anterior, mas parecia
ter estado ali sempre.
Levanteime nos estribos e tentei soltar o crânio da árvore quando
passei por baixo, mas não se mexia. Quanto mais eu puxava, mais nervoso
ficava meu cavalo. Olhei a rocha lá embaixo, larguei o crânio e
continuei em frente. Outra lição sobre desprenderse, decidi.
Por volta das sete horas, tínhamos retornado ao local de piquenique onde
a trilha se alargava, permitindo a passagem de um jipe, a cerca de 1,6 quilômetro
do início da trilha. Naquele ponto, vi algo que quase me fez cair do
cavalo. Dos dois lados da trilha enfileiravamse os fantasmas de centenas de
americanos nativos. Encaravam Jimmy e a mim, os rostos brilhando de alegria
e gratidão. Senti meu próprio coração cantando em
ressonância com eles. Eu sabia que o que tínhamos feito era grande,
mas agora sabia que era realmente grande, a ponto de merecer uma parada. Meus
olhos se encheram de lágrimas enquanto passávamos lentamente por
eles. Havia tanto homens como mulheres, e todos estavam vestindo trajes cerimoniais.
Olhavam para mim como se eu fosse alguém, como se tivesse propósito
no mundo, como se eu não fosse o esboço traçado a giz do
homem que pensei ter me tornado.
Nos anos seguintes, recebi cada vez mais informações sobre o que
realmente aconteceu no Lago Azul naquele dia. A última informação
veio em minha última visita a Taos. Nos últimos anos, os moradores
de Taos têm se queixado de um de misterioso zumbido. Um inquérito
parlamentar e várias investigações científicas depois,
o "Zumbido de Taos," como os jornais o apelidaram, continua frustrando
os moradores. Visitei Jimmy em agosto de 1995 e nossa conversa voltouse ao assunto
do barulho que todos parecem capazes de ouvir mas que ninguém jamais
conseguiu gravar.
"Você sabe o que é, não sabe, Ken,?" disse Jimmy.
Pensei por um momento. Então olhei para ele. Firme.
"É o mesmo barulho, certo?" ele disse. Fiz que sim com a cabeça
lentamente. Ele tinha razão. Era mesmo. Exatamente.